quarta-feira, 23 de março de 2011

“Naquela mesma noite, escrevi minha primeira história. Levei trinta minutos para fazê-lo. Era um pequeno conto meio soturno sobre um homem que encontra um cálice mágico e fica sabendo que, se chorar dentro dele, suas lágrimas vão se transformar em pérolas mas, embora tenha sido sempre muito pobre, ele era feliz e raramente chorava. Tratou então se encontrar meios de ficar triste para que suas lágrimas pudessem fazer dele um homem rico. Quanto mais acumulava pérolas mais ambicioso ficava. A história terminava com o homem sentado em uma montanha de pérolas, segurando uma faca na mão, chorando inconsolável dentro do cálice e tendo nos baços o cadáver da esposa que tanto amava. (...)
Passei a mão na história e corri para o saguão onde Ali e Hassan estavam dormindo, em colchões no chão. Era só nessas circunstâncias que eles dormiam dentro que casa, quando Baba saía e Ali tinha que tomar conta de mim. Sacudi Hassan, para acordá-lo, e perguntei se queria ouvir uma história.
Ele esfregou os olhos, sonolento, e se despreguiçou.- Agora? que horas são?
- Azar na hora! Essa é uma história especial. Fui eu mesmo que escrevi. – sussurrei, torcendo para não acordar Ali. O rosto de Hassan se iluminou.- Então, tenho que ouvi-la – disse ele já empurrando o cobertor para se levantar.
Li a história para ele na sala de visitas, perto da lareira de mármore. Desta vez, nada de gozações com as palavras. O que estava em jogo era eu mesmo! E Hassan era o público perfeito, em todos os sentidos: inteiramente absorto na narrativa, a expressão de seu rosto se modificando de acordo com os tons que a história ia assumindo. Quando li a ultima frase, ele fez com as mãos o gesto de aplauso sem som.- Mashallah parabéns. Amir agha. Bravo! – disse ele radiante- Gostou? – indaguei eu, esperando sentir pela segunda vez o sabor, e como era doce, de uma apreciação positiva.- Algum dia, Inshallah, você vai ser um grande escritor – disse Hassan. – E gente de todo mundo vai ler as suas histórias.- Que exagero, Hassan! – exclamei, adorando-o por isso.- Não é não. Você vai ser grande e famoso – insistiu ele.- Hesitou um pouco, então, como se estivesse prestes a acrescentar algo. Pesou bem as palavras e pigarreou.- Mas posso perguntar uma coisa sobre a história? – indagou envergonhado.- Claro.- Bem ... – principiou ele, mas logo parou.- Pode falar, Hassan.- disse eu. E sorri, embora, de repente, o escritor inseguro que havia em mim não soubesse muito bem se queria ou não ouvir o que ele tinha a dizer.- Bem ... – recomeçou ele – o que eu queria perguntar é porque o homem matou a esposa. Na verdade, porque ele precisava estar triste para derramar lágrimas? Será que não podia simplesmente cheirar uma cebola?
Fiquei pasmo. Um detalhe como esse, tão obvio que chegava a ser absolutamente estúpido, não tinha me ocorrido. Movi os lábios sem emitir som algum. Parecia que na mesma noite em que eu tinha aprendido qual era um dos objetivos da escrita, a ironia, ia ser apresentado também a uma de suas armadilhas: os furos da trama.“

O caçador de pipas- Khaled Hosseini.

3 comentários:

  1. Estou tão brava comigo por ainda não ter lido esse livro! Meu dia deveria ter mais umas 7 horas....

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  2. Calma dona, um dia você ainda lê, kk
    O filme é muito perfeito, é super realista. Você precisa ver, ou ler, tanto faz, mas o livro deve ser bem melhor. *-*

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  3. Ai se não fosse ideia minha... KKK *-*
    Um dos melhores livros que eu já li. Sério.
    Super recomendo! :)

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